Publicado em http://www.pensaraeducacaoempauta.com/#!blank-116/mbd6u
As teorias que versam sobre
a categoria identidade, em suas matizes contemporâneas, são convergentes ao
tratá-la numa perspectiva processual, ou seja, a identidade estaria sempre em
movimento. Nesse sentindo é possível dar conta de como a identidade de ser pai
e ser mãe varia de acordo com as condições humanas, sobretudo levando-se em
consideração as dimensões do tempo, do espaço e das contingências.
É possível ainda abarcar as
várias possibilidades de ser pai e ser mãe, no sentido de contemplar uma
pluralidade de possibilidade dessa identidade. O que, entretanto, vai ser
imprescindível para compreender os desafios desses pais e mães é conhecer,
justamente, suas condições. Nesse sentido, podemos interrogar quais seriam as
principais marcas dessas condições para chegarmos a entender o que tem
desafiado os responsáveis da educação de crianças e jovens.
Hannah Arendt, em seu livro
"A Condição de Humana", aponta para o fato do quanto a vida privada
(e da propriedade) se tornou um interesse público e o quanto o labor (as
obrigações voltados para a sobrevivência) substituiu o trabalho (realização e
possibilidade de transformação de si e do mundo). Em outros termos, isso
significa também dizer, a partir da obra de Arendt, de que nos tornarmos
praticamente escravos de uma sociedade voltada para a produção e consumo, não
trazendo realizações significativas para a existência. De maneira próxima, Zygmunt
Bauman segue uma linha de análise onde destaca a "liquidez" do mundo
contemporâneo, no sentido de explicitar o quanto a aceleração do ciclo
produtivo - consumidor nos torna voláteis em tudo, inclusive em termos de
experiências - vivências. Em suma, só para apresentar dois importantes
pensadores atuais que caracterizam algumas das condições da existência humana.
Sem sombra de dúvidas,
vivemos um espaço, um tempo e contingências marcadas pelo consumo e para a
sobrevivência (obviamente, para manter o próprio consumo). Quais as
consequências disso no ser pai e ser mãe? Como estes têm educado seus filhos
nesse mundo? Como a escola tem dialogado e também lidado com isso tudo?
A questão é que terminamos
por tratar nossos filhos como clientes e isso tem um custo, mas não só do ponto
de vista econômico, mas sim emocional. As crianças e adolescentes são tratadas
como clientes e, assim, não podem ser contrariadas, porque “sempre tem razão”.
Há, como diz Sergio Sinay (“Sociedade dos Filhos Órfãos), uma grande
dificuldade dos pais contrariarem seus filhos e, nesse sentido, significa dizer
que os mesmos têm dificuldades de dar limites. Isso porque se sentem culpados
por passarem uma boa parte do tempo ausentes ou mesmo porque não querem ter o
trabalho ou o ônus de contrariarem os seus. Certamente há consequências
complexas para a educação. Em primeiro lugar, significa que as crianças e
jovens não teriam as "bordas" necessárias para testarem seus limites
e, por outro lado, atenderiam aos interesses das marcas do mundo, pois estariam
mais propensos a voracidade de consumir (porque sem limites).
Um desdobramento dessa
marca de desmesura é justamente a abreviação de uma moral e mesmo de uma ética
coletiva e, consequentemente, da empatia. Em contrapartida, crianças e jovens
estariam mais propensos a uma vida predatória, do resultado, do aumento do
poder de consumo, mesmo que isso signifique a ultrapassagem de alguns
princípios éticos. Estes comportamentos, por sua vez, não são construídos
tardiamente. Ao contrário! É fácil constatar que, uma das mais renitentes
queixas escolares é justamente a falta de limites dos alunos. Isto faz com que
as escolas estabeleçam uma verdadeira tensão com as famílias para demandar que
estas possam cumprir sua tarefa e deixar para a escola a missão de escolarizar.
Acontece que esta missão da escola nem sempre foi assim, ao contrário. Desde
tempos pregressos a escola foi responsável pela sociabilização e mesmo a
“educação de base” de crianças e jovens (vide a obra de Philippe Ariès). Portanto,
parece que as escolas estariam esquecendo desse papel. Como vem dizendo Ives de
La Taille, é também papel da escola dividir a responsabilidade por uma educação
moral.
Essa marca da atualidade
que se traduz pela formação de sujeitos consumistas e, consequentemente, por
pais permissivos e de pouca autoridade para dar limites ao filhos no sentido de
saber lidar com as demandas da vida, vai se traduzir, dentre outras
possibilidades, numa relação balizada pela falta de limites.
Aliado a isso, via de regra,
os pais se sentem culpados por estarem ausentes ou por se sentirem
incompetentes para educar os filhos e tentam "comprar" suas
"faltas" suprindo os pequenos com mimos, que podem variar entre
objetos / presentes a coisas comidas / guloseimas.
O aparentemente
contraditório e que, aliado a essa permissividade que predomina na educação dos
nossos filhos, há também o padrão de negligência. Muitas vezes a permissividade
como um tipo de relação que seria a demasiada atenção desregrada dispensada ao
filho, pode também conduzir ou mesmo disfarçar aquilo que vem a ser a
negligência, ou seja, o outro (filho) seria um estorvo, um peso, ou mesmo um
detalhe na vida dos responsáveis. Esse padrão tem sido apontado como uma das
mais danosas para o desenvolvimento das crianças.
Todas essas questões
precisam ser consideradas e encaradas de frente para que haja, minimamente,
alguma possibilidade de enfrentamento e, quiçá, de transformações dessas
marcas. Com certeza não é algo que diga respeito apenas a educação dos pais, ou
da escola, mas certamente sem estes não há como dar os primeiros passos.
Marcelo Silva de
Souza Ribeiro - Universidade do Vale do São Francisco