"Conceder a palavra às crianças não significa fazer-lhes perguntas e fazer com que responda aquela criança que levantou a mão em primeiro lugar [...]. Conceder a palavra às crianças significa, pelo contrário, dar a elas as condições de se expressarem."
(TONUCCI, 2005).

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Brincadeira de rua


Por acaso, eu estacionei o carro naquela rua. Era uma rua típica de um bairro residencial de Petrolina (PE). Uma dessas ruas onde os vizinhos sentam nas calçadas ao final do dia e ficam até, muitas vezes, tarde da noite a conversar. 

Eu fiquei dentro do carro enquanto esperava meu filho pegar uns exercícios de matemática quando apareceram duas crianças, por volta dos seus 10 a 12 anos. Uma delas estava com uma bola. A dupla passou de um lado ao outro da rua. Eles estavam conversando animadamente, inclusive um dos meninos cantava umas musiquinhas de sacanagem. Eles estavam soltos e vivendo suas traquinagens livremente. Certamente esse “livremente” não significava algo de negligente do ponto de vista de suas integridades, já que estavam na rua onde moravam e sob a proximidade dos seus. 

Aqueles garotos começaram a chamar minha atenção cada vez mais justamente porque me fisgaram em minhas próprias memórias. Eu também fiquei lembrando das minhas brincadeiras na rua, da minha infância e o quanto vivia a liberdade (sempre relativa) de brincar, explorando os espaços e com a presença dos amigos. Sim! Porque criança tem amigos! 

Mas voltando aos garotos daquela rua, logo surgiram outras duas crianças. Um menino e uma menina, esta era a menor da turma. Parecia ser a irmã de um deles. Estavam propondo começar um jogo de bola (futebol adaptado à rua com chinelos marcando a trave), mas não de um modo que os adultos de hoje costumam organizar suas atividades, ou seja, de maneira objetiva, cronometrada e apressada. Eles davam risadas, contavam histórias, tiravam onda um da cara do outro e não pareciam interessados em jogar bola, embora estivessem ali para isso. 

Certamente, se estivessem em um contexto escolar, numa equipe para dar conta de alguma atividade de cunho pedagógico, seriam repreendidos pela dispersão e falta de respeito. 

A brincadeira para eles, o jogar bola, não me pareceu ser um pretexto para estarem juntos. Era uma ideia que os faziam estar ali, mas não menos importante que toda a algazarra e folia que antecedia o jogar bola propriamente dito. Era também como se toda aquela brincadeira fizesse parte do jogar bola. Então o jogar bola era muito mais que o jogo se si. A brincadeira, o prazer de estarem juntos, de se divertirem, associado ao jogar bola, pareciam fazer parte da alegria de brincar na rua com os amigos e, possivelmente, isso também iria marcar suas respectivas histórias e memórias. 

Mas não só a experiência de brincar na rua tende a marcar suas histórias e memórias, mas pode contribuir para o desenvolvimento global, sobretudo no que diz respeito aos aspectos físicos e relacionais. Nesse tipo de brincadeira (livre), as crianças experimentam, sem a vigilância, muitas vezes super-protetora dos pais, estabelecer relações, por si mesmas, entre seus pares. Há uma liberdade maior em experimentar e explorar a cultura infantil, reinventando brincadeiras, vivendo seus limites e dos outros, de um modo muito particular. 

Contudo, o brincar na rua, como um dos tipos da brincadeira livre, tem se tornado cada vez mais escasso na vivência das crianças. É claro que há boas razões para isso e muitas delas, as plausíveis, convergem para a questão da violência, sobretudo, a violência do trânsito e as violências relativas aos crimes de roubo, furto e outros de ordem sexual. 

E aí, em nome da segurança a liberdade é restringida. A rua tem se tornando um lugar perigoso e, portanto, impróprio para as crianças. É claro que a extinção da rua como espaço de brincadeira (e desenvolvimento) não advém apenas da violência, pois há outros aspectos, como a questão do mundo cada vez mais individualizado. 

Bem, aquela cena das crianças brincando na rua me fizeram reviver (e reconhecer) boas coisas da minha própria história e alargar mais ainda o quanto, espaços como esses, têm diminuindo nas vivências das crianças de hoje em dia. Sem cair em romantismos (que antigamente era melhor), entendo como importante reconhecer que as crianças têm direito a rua, uma rua segura para brincar, bater papo, jogar bola, correr... 



 Marcelo S. de S. Ribeiro

 * Pai. Psicólogo. Doutor em educação. Professor do Colegiado de Psicologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf)

Um comentário:

  1. É bom ver alguns sinais da existência do "teimar" pelas próprias crianças se organizarem e continuarem a viver a alegria da infância junto a vizinhança. Uma narrativa que me fez recordar muitas "tranquinagens" da infância. Beleza pura!

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