Por Marcelo S. de Souza Ribeiro
Nota-se uma curiosa e aparente contradição no atual estado das sociedades globalizadas, que aqui chamaremos marcas de permissividade e de autoritarismo. Estas marcas do tempo atual, apesar de se situarem em polos divergentes, se integram no modo como as relações de consumo e produção se dão, além, certamente, nos modos de subjetivação e objetivação das relações humanas, particularmente nos processos educativos, sobretudo nas relações pais e filhos.
Vivemos sob a égide de um intenso consumismo, onde o “ser” se confunde com o “ter”, de modo que precisamos “ter”, permanentemente coisas, para nos sentirmos e sermos vistos como seres. Além disso, como já tão bem explorado por Bauman (2003), vivemos um “mundo líquido”, que, dentre suas características, a descartabilidade das coisas alimenta a renovação constante de novos consumos. Assim, a lógica do produzir para consumir e do consumir para produzir (SANTOS, 2005) apregoa a máxima que devemos soltar as nossas voracidades, nos permitir e “devorar” o máximo da vida. Eis aí a permissividade de um ponto de vista, digamos, social.
De outro modo também vivemos um mundo onde o endividamento e o insucesso vivido na lógica do produzir para consumir e do consumir para produzir é atribuído ao indivíduo. “Sua culpa, sua máxima culpa!”. A culpabilização por não poder viver o máximo da permissividade consumista e o rigor de exigência atribuído ao indivíduo, aliado ao caminho estreito e reto dessa lógica, caracterizam a marca autoritária do nosso tempo. Assim, somos autoritariamente condenados pelos inevitáveis fracassos por não alcançarmos a impossível tarefa da vida permissiva ao mesmo tempo em que somos pressionados a não vivermos de modo alternativo, rompendo com essa lógica, sob o risco de sermos execrados. Eis aqui o lado autoritário.
Saindo de uma perspectiva mais social para uma individual, ou melhor, intersubjetiva, digamos assim, as relações pais e filhos trazem também essa aparente contradição.
Em minhas experiências, seja como professor, pesquisador ou supervisor de estágio (sobretudo na clínica - escola onde atuamos), observo o quanto o estilo parental da permissividade e do autoritarismo aparecem com significativa frequência e de modo integrado. Percebo que, via de regra, os pais e ou cuidadores estabelecem relações com seus filhos e ou crianças que são cuidadas num estilo de permissividade, mas também tendo momentos autoritários. É como se fosse, mais ou menos, assim: por várias razões esses pais e ou cuidadores permitem que a criança defina, ilimitadamente, suas vontades e, em um dado momento, como por falta de paciência, age autoritariamente, com violência física às vezes, para depois voltar a ceder e reentrar no padrão permissivo.
Essa aparente contradição da permissividade e do autoritarismo seriam modos de ser e de estar da humanidade que se apresentam via a chamada do duplo vínculo (BATESON e RUESCH, 1965). Para Bateson, esse duplo vínculo leva a uma espécie de neurotização e/ou esquizofrenização do humano justamente porque lida com duas mensagens opostas. Nesse caso, pelo menos para o sujeito que vive o duplo vínculo, a contradição existe dramaticamente.
Seja pela via da neurotização ou da esquizofrenicação, parece haver indícios de manifestação de comportamentos compulsivos e depressivos: quando não paramos de querer e de consumir, e não encontramos satisfação, associado com baixa tolerância a frustração; quando não sabemos adiar a satisfação dos nossos anseios e vivemos a intolerância para com o diferente; ou quando não sabemos viver de um outro jeito e não aguentamos a nos deparar com tudo aquilo que ameace o nosso santo jeito de ser.
Além disso, essas marcas da permissividade e do autoritarismo, como faces de uma mesma moeda, têm em comum a não possibilitação da autonomia do sujeito. Seja porque na permissividade não há limites ou porque no autoritarismo o sujeito não exercita o direto de ser ele mesmo (sobre isso é interessante ver Yves de LaTaille (1992), que aborda a questão da cognição e democracia).
Mesmo não sendo objeto, para discorrer nesse texto, esses possíveis indícios apontam para a problemática de uma vida onde marcas contraditórias se dão de modo integrado levando o ser humano, em sua dimensão social e individual, a colapsar sua existência.
Referências
BATESON, Gregory; RUESCH, Jurgen. Comunicacion: la matriz social de la psiquiatria. Buenos Aires: Paidos, 1965.
BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
LA TAILLE, Yves de. O desenvolvimento do juízo moral e afetividade na teoria de Jean Piaget. Em: La Taille, Yves de; Oliveira de, M. K. e Dantas, H.. Piaget, Vygotsky e Wallon. Teorias Psicogenéticas em discussão. São Paulo: Summus, 1992.
SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.).Produzir para viver: os caminhos da produçãonão capitalista. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, Brasil, 2005.